sábado, 5 de setembro de 2009

Ópera das Ruínas

Uma orquestra inteira a invadir as ruínas, uma melodia completa a preencher o silêncio, uma ópera magnífica a embelezar a noite.
E a noite cai fria para os operários das ruínas, eles retornam silenciosos e sombrios aos seus depósitos, trazem os rostos cobertos de poeira e cinzas, os motores, ainda incandescentes e rangentes de fadiga, os estômagos, vazios, os corações, famintos.
Engrenagens desgastadas a ranger, dentes a bater de frio.
Eles seguem unidos, enfileirados, como batalhões a preencher as ruas estreitas representando um mesmo símbolo, um mesmo ideal, uma fome uníssona, um anseio mútuo, uma mente coletiva. Um exército ainda não acordado para o hábito de lutar. Um exército ainda não consciente de seu próprio poder.
Botas quentes e suadas a bater fortemente contra o asfalto frio.
Um a um eles adentram em casa. Mecanicamente beijam patroa e prole, são cansados beijos de saliva e zinco. Famintos devoram como reis o pouco do que separam para si dos suprimentos de suas mansões, mas isto apenas não lhes basta, as fornalhas envoltas por labareda e cinzas clamam por mais alimenta e também outros tipos de calor. Por hora, ficam com sua marmita de brioche e aço.
Maxilares desesperados a mastigar.
Descansam suas peças sucateadas frente à alienadora das noites, a caixa mágica de enunciar falsas verdades, iluminados pela luz hipnotizadora sentem o torpor invadir suas veias. Assistem esperançosos e quase babando as histórias de vida do exterior-maravilha. Impressionam-se com o quanto a vida pode ser luxuosa e abundante para além dos muros das ruínas.
Mentiras e bocejos a ecoar.
E sempre acaba descendo à mente de um operário a idéia de que tudo vem das ruínas. Dos carros negros até as roupas da moda, tudo, tudo, dos cereais do café da manhã até os móveis de madeira nobre e lustrosa. A genesis tanto do que é vital quanto do que é supérfluo. Porém o que denunciam seus telhados precários e suas botas desgastadas é que tudo do mais belo produzido nas ruínas é senão o primeiro a deixá-las. Toda vez e sempre chegam os porcos rosados em seus paletós e cartolas e abocanham tudo quanto podem, enfiam os focinhos fétidos nas pilhas de plástico e cerram seus dentes onívoros sobre toda a lama que conseguem. Para as ruínas sobram pouco, melhor, o necessário, e também o que volta em detritos do que os porcos levaram; o que já não presta, ou pouco presta, ou ainda o que pode ser de alguma maneira utilizado. A nemesis tanto do que já foi vital quanto do que já foi supérfluo.
Anúncios intangíveis a invadir as casas.
De olhos arregalados com tanta revelação, o simples operário reflete a cerca de como poderia alterar tal situação, seus lábios cansados não tem voz para falar por todos os seus colegas, muito menos seus braços têm força para lutar por eles. Sabe que caso tentasse, os porcos simplesmente o trucidariam como já fizeram com tantos outros, chafurdariam seus narizes em suas entranhas para dele tirar tudo que possuísse e abocanhariam sua garganta de modo a impedir que qualquer denúncia saísse de sua boca. Inocente, imagina estar sozinho e ser o único a manter estes pensamentos perigosos. Inocentes, imaginam todos estarem sozinhos e serem os únicos a manterem estes pensamentos perigosos. Ilhados, mas mantendo secretamente, inclusive de si mesmos, um ideal mútuo. Tolos, bastaria a eles que abrissem as janelas, mirassem nas casas de seus vizinhos e vislumbrassem iguais olhos arregalados de estupefação e revelação. Mas não, permanecem coletivamente isolados e sentados, de janelas fechadas, cara a cara com a caixinha mágica, afogando-se em seus brilhantes anúncios.
Quietos suspiros de conformação.
Porém a noite segue, e seguindo vem senão a hora de dormir. Já estando a prole amontoada ao seu modo e desacordada, os operários rastejam cansados até suas camas, onde, com um animalesco sorriso de felicidade, vão encontrar suas patroas, estendidas, semi-nuas, olhando-os com luxuriosos olhos de chamado. De súbito sentem já seus corpos gritar, suas fornalhas internas acenderem vorazmente e o cansaço ser jogado juntamente ao macacão de trabalho em um canto qualquer. É a verdadeira ópera das ruínas que está para começar.
Silêncio, como uma profunda tomada de fôlego.
Os operários sobem discretamente ansiosos em suas camas, observam em olhos felinos suas presas, engatinham lentamente até elas, tal como leões em uma savana, espreitam quietos as formas onduladas dos morenos peitos, as finas cinturas, os cabelos fartos e bagunçados, as pernas atraentes, os pescoços expostos, os olhos tentadores.
Gargantas a rosnar suavemente.
Do lado de fora das casas, vê-se os telhados negros e precários estenderem-se por todos os lados, a noite fria e seca a cobri-los, as luzes tênues aos poucos se apagarem aqui e ali, as janelas fecharem-se para abafar os gemidos, os vidros adquirirem aquele tom esbranquiçado de transpiração e das frestas dos barracos saírem um vapor de cheiro humanamente animal.
Beijos suaves a cantarolar.
Os operários tomam as pernas de suas patroas, cobrem-nas de beijos dos pés às virilhas, mantendo o olhar fixo nos olhos de sua senhora, os lábios finalmente vão seguindo seus caminhos pelos abdomens até os peitos redondos, lá tecem comentários sutis e silenciosos para o agrado das fêmeas, as quais permitem a continuação do trajeto até o pescoço, onde os lábios permanecem por deliciosos minutos, sugando leve e saborosamente a pele morena.
Suspiros rápidos e surpresos de excitação.
Quando então a expectativa já é demais para suportar-se, lábios femininos e masculinos encontram-se loucamente, beijando-se, lambendo-se, engolindo-se; as línguas vêm e vão de suas cavidades, alisando e conhecendo o outro; a saliva quente e mútua escorre das bocas insanas e vão pingar sobre os membros já molhados de tesão.
Beijos loucos a gritar.
Os membros se entrelaçam, as almas se abraçam, os corações prometem um para o outro o amor sincero das ruínas, despido de jóias e mansões, quase uma necessidade, um ato natural e inerente à vida. Os corpos ocupam o mesmo espaço e segue-se o cotidianamente especial ato, o movimento harmônico dos seres, a dança de músculos e gemidos, a música de expressões e respirações frenéticas.
Camas a bater contra o chão.
São as fornalhas noturnas de produzir operários. O motivo maior da vivência desse sonho das ruínas, a semente que acaba em lenços vermelhos e gritos de felicidade, mais braços fortes para trabalhar ou até mesmo para lutar, quem dirá? A esperança das ruínas, dos operários que já não crêem em sua própria geração.
If there is any hope, it lies in the proles.
Gemidos finais e completos, satisfação e gozo.
Exaustos, os operários estendem-se em suas camas e dormem, profundos e felizes.
Nas ruínas restam apenas os ruídos dos animais noturnos.
E a ópera segue suas últimas notas, a semelhança de um réquiem, um réquiem das ruínas, em homenagem ao amor nu e sincero dos operários, é o que lhes resta para agarrar de tudo que se perde cotidianamente aos porcos.
Mas os lenços tornar-se-ão vermelhos, e, talvez, nasçam braços de lutar.

Pérolas aos porcos.
Brioche e ópera aos operários das ruínas.

2 comentários:

  1. muito bom esse texto! me lembrou o operario em construçao mas com uma visão bem mais real e cruel. adorei a imagem das ruinas e dos porcos!
    esse texto me fez pensar muito! gostei demais!

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  2. Olá.
    Gostei bastante do texto, senhor André.
    Gosto do seu estilo. (falei o msm para a deborah). Não sou ninguém pra ficar discutindo qualidades, mas eu leria você. A riqueza das imagens e a agudez da sensibilidade que você vai colocando em meio a certa crueza me cativa. O texto vai transitando entre uma narrativa dura, com um ponto de vista firme, que julga; toques de calor, cores e beleza nos adjetivos, nas descrições, e delicadeza, em alguns fluxos de consciência. Gosto disso, minha mente funciona um pouco assim às vezes ^^

    Lembrou um pouco o começo da "Valsinha Brasileira" do Villa Lobos.

    Dúvida: Você leu algum texto/autor para inspirar-se e fazer este?

    Abraços cordiais,
    a menina que te peseudo-conheceu no Einstein.

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