quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A vontade louca e incontrolável de viver

Rápido, rápido, quase sem respirar!
Andar por ruas escuras...
Restos de papel levados pelo vento... Multidões de seres sem rosto... Sol oculto por arranha-céus...
Arranha-céus! Dentes a te engolir! Boca a te enclausurar! Antropofagia social! Pessoas a devorar pessoas! Incompreensão! Paradoxos inconscientemente sobrepostos! Discretas constantes repreensões! Injustiças! Vozes dando lugar a buzinas! Censuras! Aconcretamento espiritual! Concreto a inundar tuas vias respiratórias!
É a vontade louca e incontrolável de viver que sufoca.
Meu deus! (explosão)
Teus olhos expandem-se até o limite, mas de tão abertos mal consegues ver (dúvida)! Tuas sobrancelhas curvam-se para dentro como se tragadas pelos olhos (dois ralos na face, ressaca)! Tua testa pálida estende-se ao limite (sem cor, sem sangue)! Tuas narinas dilatam, engrandecem, vão para trás (preferem o ar do interior)! Teus dedos contorcem-se e enrijecem-se (garras)! Tuas mãos desesperadas e frenéticas vão à face sem idéia do que fazer (consolo)! E tua boca... Tua boca magnífica-se até a extensão insuportável de lábios finos, até o ângulo máximo que os ossos podem oferecer, até a dor generalizada dos músculos da face, em um grito único, um grito mudo, um grito sem voz, sem palavras, que mais suga do que expele, grito-ralo (ressaca)! Pavor! Pavor!
Por que estar aqui quando posso estar em outro lugar?!
É a vontade louca e incontrolável de viver que grita.
Silêncio...
O grito reverbera... Disforma o exterior... Ondula freneticamente o ar seco e poeirento, o céu azul-fuligem, as poças de água imundas e lamacentas do chão... Afugenta as pombas, os ratos, as baratas...
Mas é tão quebradiço e frágil contra o asfalto, contra o aço, contra o concreto, contra a pólvora, contra as pessoas...
Fugir! Fugir!
Rápido, rápido, quase sem respirar!
Foges para o interior da fera! O próprio útero colossal!
Precisas sair do formigueiro macabro, do hospício social!
Entras no primeiro vagão com que deparas! É o túnel mais rápido para escapar da selva!
Sentas! Mas precisas acalmar-te... Respirar fundo...
Encaras os arredores... Estas no conhecido baile de máscaras do dia-a-dia...
Ao divino som da ópera do metrô... Do metal contra o metal... Da metálica voz de prever estações...
Indivíduos coletivizados e suas faces de papel machê, cartolina e plástico...
Olhos ao chão... Há pouco para se ver...
Mas há muito para se ler! Muito para aprender!
É a vontade louca e incontrolável de viver que recorda.
Sim! Sim! Avança sobre os livros que carregas consigo!
Há tantas experiências para arquivar! Tantas orações para memorizar! Tantos ditados para digerir! Tantos períodos para destrinchar!
Precisas saber de tudo um pouco! Do ortodoxo ao esotérico! Do católico ao moderno! Do corriqueiro ao ecológico! Do casto ao importante! Do biológico ao extraterrestre! Do metafísico ao bizarro! Do belo ao vermelho-sangue!
Espremer de cada sílaba um motivo para viver!
Adquirir o mais contemporâneo do contemporâneoneoneoneoneoneoneoneoneoneo!
Mas as informações escorrem de tua mente... As introspecções acabam por perderem-se em ti... Pergaminhos nadam em vinagre... Lâminas de sulfite flutuam em fogueiras mentais...
O vagão pára... É a tua estação... Recolhes teus restos e sais...
É dali que pegarás o ônibus para teus montes, tuas planícies, teus céus ensolarados e estrelados...
Mas algo ainda acorrenta-te ao cenário de pedra... O que?
É a vontade louca e incontrolável de viver que cutuca.
As pessoas! (explosão)
Pessoas! Existem rostos sob as máscaras! Expressões! Olhos!
É a vontade louca e incontrolável de viver que sugere.
De olhos dilatados, fixos e aquosos de curiosidade... A boca entreaberta desleixadamente, quase a babar... Uma expressão toda de tela branca...
Eis que vês dois belos olhos! Castanhos, quase negros... Aproxima-te deles... Estão apressados... Fingem não te ver... Não te incomodas... Inconscientemente te posta na frente dos olhos impedindo-lhes a passagem... Eles param... Observam-te confusos... Aproximas tua face dos olhos... Eles são tão belos... Mas parecem tão ríspidos, fechados, superficiais... Não, não, tem de haver algo sob eles...
Vês outros olhos, tão igualmente belos! Verde-acinzentados... Esquece-te dos que flertavas e flutuas para os novos... O tratamento é semelhante... A resposta dos olhos é semelhante...
Mas eis que vês outros olhos, tão igualmente belos aos anteriores! E outros! E outros! E outros! Arghhhhh! Queres conhecer todos, mas a multidão é tão infinita! Queres aforgar-te no duplo mar de leite pessoal! Queres extrair de cada um as intimidades, os anseios, o segredo, a verdade, mas eles parecem tão lisos e secos!
Por que os olhos ignoram-te?
É a vontade louca e incontrolável de viver que pergunta.
Arghhhhh! Não te conténs! Avança sobre os olhos! Empurra-os para chamar-lhes a atenção! Puxa-os para vê-los melhor! Abraça-os para confortá-los! Fala com eles! Estas desesperado por uma resposta! Mas tudo que recebes é medo, incompreensão...
Sorriso forçado... Represa de lágrimas...
Mas encontras duas jóias brilhantes entre outras de menor valor! Ao longe vês dois olhos miúdos, fatigados, idosos, experientes, simpáticos! Queres extrospectar deles todo o seu conhecimento, todo a sua experiência, toda a sua história! Voa até eles, com as pupilas dilatadas, o coração saindo-lhe pela garganta e um sorriso louco de ponta a ponta.
Arrghhh! Mas eles se mostram tão fechados quanto os outros!
Arrghhh! Mandem chamar a alma, por favor!
Ignora os olhos, vais direto a fonte! Com ambas tremidas mãos abres à força a boca da velha senhora até quanto os limites biológicos te possibilitam! Examinas o interior quase que colocando teu próprio globo ocular dentro da cavidade! Teus olhos lacrimejam, babam de curiosidade! Vês os dentes amarronzados, a língua pequena, restos de comida aqui e ali! Não! Não! Queres a alma, o interior, os anseios! Projetas tua própria voz na concavidade! Alma!
Eco. Alma... Alma...
Enfim és arrancado de tua busca! Tua missão é interrompida por murros! Teus ouvidos sufocam-se em berros! Teus lábios experimentam o chão de cimento! Tua vida vermelha vaza por teu nariz!
É a vontade louca e incontrolável de viver que escorre.
É a vontade louca e incontrolável de viver que agoniza.
É a vontade louca e incontrolável de viver que desiste.

Já de maxilares exaustos e lábios censurados retornas à tua caverna
Sentes o peso do que querias que tivesse sido e não será.
Viver é a arte de conformar-se.
É a vontade louca e incontrolável de viver que morre.

5 comentários:

  1. em meio ao maçante cotidiano, ouve-se "o grito" contra a conformidade.
    belas imagens.
    muito há que se pensar.

    ps.: encontrei minhas introspecções perdidas ;]

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  2. Tanta vontade de viver que a vida acaba passando e a vontade ficou sendo só vontade mesmo...

    Déeseustextosfilosóficos.beijos.

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  3. André só to aqui oficializando oq eu ja te flei...
    Qnd eu li esse texto eu realmente consegui VER e SENTIR oq eu estava lendo... O desespero, a agonia e talz...
    Com musica de fundo entao... PERFEITO....
    Adoro qnd vc escreve nesse estilo...

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  4. É a vontade louca e incontrolável de viver que escorre, agoniza, desiste.

    Escorre, pois não pode ser contida pelas mãos daquele que à possui. Agonizas, sabendo que gota a gota a vontade louca e incontrolável de viver torna-se conformismo. Desistes, não encontrarás alguém que carregue teu tesouro (ou fardo). Os seus, eles já perderam. E não entendem por qual razão terias um destino diferente de seus próprios. Estão (agora também estas) todos conformados... iguais... normais?

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  5. Permite que eu seja bastante sincero? .-. É óbvio que o texto tá muuuuito bem escrito (acho até que seja desnecessário dizê-lo, já que é obvio que você o sabe), mas quanto ao tema... sei lá, achei meio "tempestade em como d'água". Não acho que "viver seja a arte de conformar-se". Viver, na minha concepção, é algo mais do tipo "a arte de reconhecer a ausência de obstáculos e de sintonizar-se com o meio, a fim de enchergar a realidade com extrema nitidez e enfim entender que os borrões de outrora não passam, nunca passaram e jamais passarão de imperfeições nas suas retinas" ~

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