sábado, 15 de agosto de 2009

Indiferença

Música: "Airplane" - The Album Leaf

Olha-te no espelho,
Vês-te?


Sempre gostei de parques... Não os desprovidos de vegetação, os quais os raios de sol abundam, chegando a cegar-nos os olhos... Mas sim os de céu verde-bem-escuro, com pontinhas aqui e ali de azul-claro, são bons lugares para pensar... Acredite, árvores nunca te negarão um conselho, não importando a questão, sempre balançaram suas copas, seus galhos, suas folhas, afirmativa, ou negativamente... O úmido perfume delas é agradável e aconchegante... Sua rugosa textura confere-lhes uma expressão sábia, de quem muito já viu e viveu... Sua sussurrada voz é calma e poética... Ficaria ali minha vida toda... Feliz e completo...

Mas a vida demanda outra opção.
Sais.
Ganhas a rua, os inúmeros semáforos, os incontáveis automóveis, os inacabáveis prédios.
Cinzas. Rápidos. Sólidos. Magistrais.
Buzinas, conversas, sons confusos, inconstantes, indecifráveis.
Cheiros nauseabundos fluindo entre alguns outros mais agradáveis.
A cidade é mais fria do que acusam os meteorologistas.
Toda uma paisagem a ignorar-te.
Indiferente a ti.
Mas, ironicamente, não sentes tédio, não sentes nojo, não sentes ódio.
Sentes a mesma sensação de sempre, o rotineiro conforto de quem se esconde, de quem rasteja seguro, de quem cava sem alarme, de quem não é julgado por olhares alheios.
Verdade, não há olhares.
Mas não há tempo para constatações, a vida demanda pressa, caminhas para o subterrâneo.
Esperas.
Um som característico sobrepõe os outros, anunciando a chegada do trem.
A massa metálica passa veloz, vês portas, vês janelas, vês barras e corpos presos a elas, mãos, braços, troncos, cabeças, pernas - brancas, pretas e amarelas. Um açougue. Peças humanas expostas. Paisagem.
Pegas tua maleta, e adentras.
O trem segue, as peças de carne balançam concomitantes ao trepidar do vagão, mas ocupas-te em observar o chão, indubitavelmente mais interessante.
A indiferença é recíproca, confortável.
Irônico, buscas a segura indiferença do mundo, mas odiarias se tal viesse de um próximo.
Memórias recentes ressoam em tua mente.
Palavras sussurradas e ofegantes de um ser ao teu lado.
Estais sobre a cama, repousando, descanso característico de pessoas as quais acabaram de gozar dos prazeres íntimos.
O outro quer uma relação séria, declarada.
Tens medo. Mudas de assunto.
Mas o outro insiste, quer que todos saibam de vosso amor.
Tens mais medo.
O que diriam os colegas do trabalho?
Ou os pais e o resto da família?
Ou tantas outras pessoas que te conhecem?
E tantas outras que não conheces?
Tens medo dos olhares.
Mudas de assunto.
Mas o outro insiste, quer-te, ama-te.
Negas-te ao outro.
Pegas as tuas roupas e preparas-te para sair.
Vês o quarto antes de deixá-lo, não há nada além de paredes, uma janela, uma cama, e um pedaço suado de carne sobre ela.
Assustas-te, é arrasto dos confins de seu cérebro para a realidade, olhares surgem!
A paisagem converge para um ponto fixo do trem. Tu fazes parte dela. Converges.
Duas pessoas, dois olhares recíprocos a nada além de si mesmos, dois namorados, dois garotos, ali, amando-se, beijando-se, acariciando-se, falando baixinho um ao ouvido do outro, de mãos dadas, de rostos a tocarem-se, sentirem-se, risonhos, felizes. Indiferentes à diferença.
A paisagem os julga, os olhares os julgam, comunicam-se silenciosamente em desaprovação. Tu fazes parte da paisagem. Concordas com os olhares.
Mas secretamente, até de ti mesmo, sentes inveja.
Desejas sentir aquela respiração quente, não a característica do ato sexual, mas a de conversa animada, cara-à-cara, íntima. Desejas sentir o toque macio de outros dedos entre os teus próprios. Desejas sentir o sorriso de outro penetrar-te e tornar-se teu.
Mas és indiferente.
O trem pára, os amantes descem, os olhares cessam.
As carnes voltam a balançar concomitantes ao trepidar do vagão. Paisagem.
Mas meia-hora depois, chegas a tua casa, acendes as luzes e ouve uma voz receptiva vinda do fundo da cozinha.
“Oi...! Oi...!”
Por um momento o apartamento adquire uma expressão. Reconforta-te. Como se aquela singular porta fosse, com as suas três fechaduras, capaz de segurar a indiferença do mundo do lado de fora.
Mas vais até a fonte da voz e encontra teu papagaio, dás comida a ele e o bichinho infla o peito e põe-se a dormir, silencioso e satisfeito. Reparas que as rosas sobre a gaiola, presente do outro, estão murchas, secas, quebradiças, resultado da carência luminosa do local. Não vês outra opção, atirá-las no lixo.
Segues para o interior de teu lar, não te dás o trabalho de acender o resto das luzes, nem de ligar a televisão, a penumbra e o silêncio não te incomodam, não há expressão.
Colocas tuas coisas sobre a mesinha, e, por acaso, olhas para o extenso espelho sobre esta.
Observas.
Vês cabelo, um nariz, dois lábios, dois ouvidos, um pescoço, ombros, tronco, braços, mãos, coxas, pernas, pés.
Paisagem.

Não sabes, mas estás morto.

6 comentários:

  1. ah, você tinha razão eu gostei, muito.
    digamos que hmmm , já passei por algumas situações parecidas , já peguei minhas roupas e me preparei e realmente sai. xD
    Você sabe porque escreve bem né?uhahuahua
    abraços! (nha).

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  2. muito bom msm! eu ja tinha t falado isso quando vc me mandou essa historia: me emocionou muito! adorei!
    abraço

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  3. O eu desse texto me faz lembrar de tudo que eu mais quero evitar... O que eu mais fujo de me tornar...
    Eu tinha lido esse texto e DEPOIS "a vontade louca e incontrolavel de viver"... com um tempo entre eles... Mas agora lendo na ordem contraria... Esse texto parece o fim do eu do texto anterior, o q ele se tornou...
    Ler esse texto nesse exato momento me deu força... Me deu novas expectativas para uma velha busca...
    "..."
    Eu tinha escrito mais.... porém foi meiu impulsivo e achei q ia ficar mto rude... ou ofensivo...entao apaguei....
    Bom... senti pena do quase(mtoembrevetotalmente)pedaçodecarne-eulirico desse texto... e ,se pudesse, desejaria sorte para a PESSOA suada na cama... entre outras coisas q eu tb acabei de apagar...

    Chorei a primeira vez q li esse texto... Amo ele... e odeiu/tenhomedo/fujo (d)ele... ;)
    entao...
    Fuiz!

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  4. Nussss... demorei pra le, mas agora q li me arrependi de n te lido antes...
    Mto bom, até arrepiei no final.

    abrç

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  5. Esse foi um dos primeiros textos teus que eu li :3 Muito, of corse. Acho o estado que você descreve no texto, de contemplação absoluta e nada crítica, necessaríssima ao interagir com um ambiente tão "carregado" e "ligado em vários canais ao mesmo tempo". Se te permitires pulsar no mesmo ritmo que todo coração que vieres a focalizar, terás uma arritmia antes que pisque à segunda vez (/odeiousarasegundapessoaeachoqueuseierrado). É preciso impermeabilizar-se do mundo externo para que seu mundo interno não se dilua entre os demais, mas permitir-se algum contato com certas coisas também é vital. Todo extremo é prejudicial, e a resposta é a seletividade ;*

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  6. Adorei as intertextualidades...

    E o fim...A ultima linha...

    Beijo...

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