sexta-feira, 31 de julho de 2009

Redenção

“Kyrie, ignis divine, eleison.”

Por entre seus dedos cruzados na altura dos olhos o imortal fitava fixamente o filho de Deus. Persistiu com o olhar por alguns segundos, arriscando até mesmo um leve sorriso de canto de boca. A eterna expressão de sofrimento, a eterna encharcada coroa do salvador, o eterno sangue seco a escorrer pela face, os eternos músculos exaustos como se a ponto de romperem, uma tela toda de dor implorando pela morte.
Morrer não deveria ser tão ruim, afinal.
O imortal levantou-se, desfazendo tanto a posição de reza quanto o discreto sorriso. Seus escuros olhos percorreram por toda a magnitude do local, a tênue luz dos pequenos holofotes dispostos perto do altar e na base das colunas criava bizarras formas a partir das sombras dos detalhes barrocos, os olhos dos anjos esculpidos, ocultos pela escuridão, pareciam inexistentes, longínquos, o teto permanecia à semelhança de um poço ao qual não se pode ver o final, tornando o espaço em muito maior do que realmente era, e, no centro de tudo, sobre o branco altar, Ele, arquitetado sobre seu trono-cruz, de cabeça pendida para o lado esquerdo, recusando a nos olhar.
O sacrifício de Deus para absolvição da humanidade.
Lentamente o meio sorriso voltou ao canto da boca. Todos aqueles humanos resignados, de joelhos, preenchendo os bancos de madeira da casa de Deus, suprimidos pela magnitude do ego divinal, implorando o perdão supremo, tementes ao ignis divine.
Hipócritas. Todos eles.
Repugnantes, rastejando em direção ao templo tal como vermes rastejam em direção a uma carcaça em putrefação. Almejando muito mais o alívio de suas pesadas consciências do que a palavra de salvação de um ser maior. Suas mentes podres repletas de vícios, ódio, ganâncias, suas bocas sujas repletas de falsas palavras, suas mãos fétidas banhadas em sangue alheio, seus olhos covarde incapazes encarar verdadeiramente o semblante do senhor.
Only the evil doers, Mikael.
Assim disse seu mestre em alguma noite distante. Eram outros tempos, mais limpos talvez, de mais árvores e menos prédios, de mais céu e menos fumaça, de mais religião e menos ciência, mas os homens já possuíam essa tendência canibalista, essa potência autodestrutiva. Porém Mikael sabia que por meio disso que podia alimentar-se sem sentir o peso da culpa acumular ao longo das eras. Sorver de cada veia impura a última gota de lama. A redenção de seus próprios pecados.
Era irônico pensar que ele acreditava mais em Deus do que a maioria dos mortais.
Deixando o banco, ele caminhou pelo corredor entre os bancos, austero, observando um a um os seres cabisbaixos Era impossível conter o curto sorriso. Pensamentos, palavras vaziais, flashs horrendos, súplicas, todos os fluxos advindos das mentes dos homens convergindo para os imortais olhos de Mikael. A escolha do sacrifício da noite, aquele que deixaria o plano dos vivos para encontrar-se com o criador, parecia próxima.
Sangue.
Vinha de um senhor de sereno semblante; olhos fortemente cerrados, sobrancelhas grisalhas e grossas, lábios a moverem-se como se inconscientemente, balbuciando sílabas aparentemente desconexas; era magro e trazia já o ralo cabelo acinzentado e a pele com certa flacidez, característica da idade. O fluido esvoaçava a cada potente e implacável facada. Mikael assistia às memórias perturbadas do homem indiferentemente; lá estava o velho, em um barracão escuro e decrépito, sentado sobre o abdômen de uma jovem mulher de pele morena e belos olhos abastados, a jovem debatia-se vorazmente, mas seus braços jaziam sob as pernas do homem, o qual parecia apenas divertir-se com o desespero da moça.
A explosão de terror da moça ao ver a faca retirada do paletó do velho era deliciosa aos olhos do homem.
E um a um os golpes sádicos atingiam o colo dela.
A cada golpe sádico um fino jato de sangue esvoaçava do peito moreno.
A cada fino jato de sangue o velho abria o sorriso macabro de dentes amarelos.
A cada sorriso amarelo evidenciado os olhos da moça exauriam-se de gritar.
O rito durou longos minutos, apesar de que ao velho pareceram apenas alguns saborosos segundos. Já estando há muito morta, as orbitas da moça permaneciam viradas para trás, o peito dela jazia aberto e inundado em tripas e sangue, alguns insetos voadores aproximavam-se do cadáver enquanto sentiam o odor necrotérico exalado. O velho então, cansado de sorrir e vendo seu brinquedo quebrado estendido pelo chão, quis sorver dele todo o deleite ainda restante, cobrindo o pescoço ensangüentado de beijos, lambendo os bigodes molhados em seguida.
Era suficiente.
Mikael fechou a sua mente para as bizarras lembranças do velho. Não havia mais porquê prosseguir, era aquele senhor o eleito da noite, o grande ganhador, o hipócrita dos hipócritas, o pervertido dos pervertidos. Mas era tempo de esperar agora, esperar que o infeliz trocasse suas ultimas palavras com Ele, ou com a sua ensangüentada consciência, que fosse. O imortal esperou, restringindo-se inclusive a nem mais ouvir os pensamentos do futuro morto. Mas ele levantou afinal, de olhos baixos arrumou o paletó, e sem vislumbrar o salvador ele deixou o banco, percorrendo o corredor central, passando rápido por Mikael.
O imortal deteve-se a virar e, em longos passos calmos, seguir sua presa.
Chegando ao grande portão da catedral Mikael deparou-se com uma moça de longos e cacheados cabelos avermelhados e pele branquíssima, quase como a sua própria, trazia um semblante perdido, trágico, de boca aberta desleixadamente e negros olhos como se escorressem. Não pode negar que fora irresistível a tentação de olhar dentro daquelas janelas.
Viu uma rua, a moça, uma criança acompanhada por um homem, um carro, sangue.
Muito sangue. Lágrimas, muitas lágrimas.
E a cena toda foi assistida pelo imortal e sua antiga expressão indiferente. A curiosidade se fora. Não era uma alma pecadora por hora. Ao passar pela moça, restringiu-se a pousar levemente sua mão branca sobre o ombro dela. A moça pareceu ignorar o contato, continuando a olhar fixamente para o salvador em seu trono.
O imortal ganhou o frio da noite abandonando o templo.
Caminhou pelas ruas escuras enquanto perseguia o velho, homem este que não parecia perceber os passos silenciosos do predador às suas costas. Passaram indiferentes pelas velhas construções de tijolinhos, pelas retorcidas e mortas árvores do inverno, pelo noturno céu nublado. Andaram minutos a fio até que os pés da presa a levassem para um beco qualquer dos tantos da cidade. Era o momento.
O velho caminhou calmamente até a metade do escuro beco, parou e virou-se para o imortal, encarou seu vulto próximo, da onde distinguiu apenas os longos e lisos cabelos negros jogados por de trás dos ombros, os olhos completamente negros, porém possuidores de um leve brilho assassino e seus lábios brancos como se feitos de mármore.
O imortal avançou.
Em um segundo já estava com os afiados dentes penetrados sob a pele fina do homem, dando a este apenas tempo para um quieto soluço de surpresa. Por minutos inteiros o imortal bebeu do sangue estranhamente doce, sentiu os músculos afrouxarem sob o seu abraço, os ossos penderem como se lhe tirassem a vida.
Findado o abraço, o homem caiu, como se de um boneco de ventríloquo cortassem as cordas.
Tomado por um impulso incomum, Mikael segurou o corpo antes que atingisse o chão. Como se sentasse no ar, apoiou o velho sobre suas coxas, em seu braço direito encostou as costas do assassino, com sua capa negra estendendo-se até o chão, como se formasse um pequeno altar. Pode sentir as pernas dele soltas no ar, apoiando-se levemente na sua própria perna esquerda, o braço direito do homem caído sob a perna direita do imortal, o esquerdo reconfortado abaixo do peito de seu assassino, e a cabeça do velho diretamente acima do cotovelo direito de Mikael, pendendo para o alto, como se as nuvens cinza-amarronzadas ou a fraca lua que apontava entre elas fossem a própria face do criador.
Ele sabia e aceitava que ia morrer.
Os olhos de Mikael encararam os olhos distantes do velho, a pele branca, resultado do pouco sangue que o imortal deixara em suas veias, e os lábios autônomos que, com poucos movimentos, disseram:
“Algum dia você será capaz de me perdoar?”
Os olhos de Mikael expandiram, tragicamente surpresos, sua expressão indiferente desabou. Não pode mais encarar o homem, permanecendo com a eterna e jovem face voltada para a barriga dele.
“Sim...”
Responderam seus ensangüentados lábios calma, porém sofregamente.
O imortal pode ouvir uma inspiração profunda, seguida de uma expiração libertadora.
Teve certeza então que o homem havia deixado este mundo.
Permaneceu fitando apenas o nada por minutos, sentido de seus olhos agora calmos escorrer o próprio sangue retirado do velho, para escorrer em dois finos fios por sua face de mármore e cair sobre o peito rígido do homem, a juntar-se com o que já brotava do ferimento no pescoço.
A singular beleza da morte.
A singular beleza da redenção.

Um susto sufocado quebrou o silêncio.
Em um segundo o imortal largou o corpo e virou-se para encarar o ser às suas costas.
Era a mulher dos longos e cacheados cabelos vermelhos.
Ao ver o morto e o sangue, a jovem fugiu desesperada pelo beco, como se fugisse da própria besta.
Aquele não seria o único eleito da noite...

7 comentários:

  1. São muitas as ações acontecendo uma logo em seguida da outra rápido demais, pelo menos para mim, o que fez com que a leitura me fosse um pouco confusa. Mas pelo que entendi, trata-se da istória de um vampiro que tem alguma ligação com Deus, e que vinga a morte de uma moça assassinada por um padre (?) sádico. Gostei.

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  2. Muitos, muitos hipócritas juntos.
    Até os que aparentemente têm as "melhores"[?] intenções.
    Dá um plano de fundo bem realista, né?
    [Muito 'ew' na parte do velho.]
    Susan Meyer, Eis aqui um vampiro que não brilha!
    Há!
    ;*

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  3. achei intenso mas realmente nao eh facil de ler... mas acho q isso deixa tudo mais sombrio! sangue! marmore! igreja... eu curto!

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  4. WTF, mto boa a historia...
    eu discordo do pessoal, axo mto daora o jeito q vc escreve.

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  5. muito bom! adorei o jeito q foi escrito!
    me deu ate arrepio! as descriçoes sao demais e curti muito o clima sombrio!
    muito foda essa historia!

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  6. nhaiiiiiii
    quantas pessoas dando opnioes tecnicas >.<
    eo simplismente ADOREIIII...
    fikei todo arrepiado e zaz...
    tipo... nossa!! eh um misto de sentimentos q me passaram aki feLomenal XD

    caraaaa tipoo.. ahh eh o tipo de estoria q eo amoooo *0* e eo realmente axei muito bem escrita e zaz.. pra mim tah mais q otimaaa *0*..

    muito phoda mesmo

    Susan Meyer, Eis aqui um vampiro que não brilha! [2]

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